Nos mitos gregos encontramos a história do belo Narciso. O jovem rapaz, belo e vaidoso, foi amaldiçoado por rejeitar os favores das ninfas. O castigo imposto foi que, ao amar, jamais teria acesso ao ser amado.
Um dia, ao se curvar para beber água em um lago, Narciso viu seu reflexo. Se apaixonou perdidamente por sua própria imagem e ali ficou, consumido por um amor a si mesmo e preso a sua imagem. Assim, foram consumidos seus dias e beleza em um amor ao qual jamais teria retorno.
O mito de Narciso sempre nos toca – seja por um certo sentimento de aversão por sua postura de louvor de si mesmo ou, de pena, por esse jovem tão belo e com tanto para conquistar, se definhar sob sua própria imagem. Penso talvez, que esse assombro seja porque Narciso ainda se faz presente em nossa contemporaneidade.
Veja quantos reflexos de nós mesmos nos defrontamos todos os dias. A cultura que transborda imagens a serem seguidas e vivenciadas. Quais carros vamos ter? Qual moda vamos seguir? Qual é a rede social do momento? Qual cena vamos criar para os “likes” que nos fazem reais em um mundo cada vez mais virtual?
Quem sou eu? Quem de fato é o outro? O eu, o meu, o sou… Orgulho, vaidade, possessividade. Este homem, esta mulher, este conjunto de seres humanos dessa vasta terra – da brutal terra globalizada, moderna, capitalista. Conseguem ver? Os reais cenários ofuscados por esse espelho gigantesco de uma imagem idealizada que nos aprisiona em só ver e consumir nosso próprio eu?
Não há espaço para ver a dor, a fome, a destruição, o colapso. A arquitetura que se lança aos céus com seus prédios imensos espelhados, refletindo de volta a imagem daqueles que passam solitários em si mesmos, enquanto lança pedras, flechas e ganchos impedindo o real de se mostrar.
Tal qual Narciso, o homem regido pelo capital se curva sobre si mesmo, egocêntrico, afundado em suas futilidades tolas. Utilizando-se de todos os meios para se servir, para ser idolatrado e adorado – o belo, o melhor!
Fome? Não existe fome. Pandemias? Não existe pandemias. Aquecimento global, devastação da natureza? Não existe… Tire o foco, tire a câmera… Olhe, olhe para os holofotes, para as redes, para as polêmicas. Se perca do essencial, do verdadeiro, do honesto. Afogue-se e se perca.
Manipulados, amaldiçoados, presos em si. Quantos espelhos, milhares e milhares de reflexos. Olhos que não encontram outros olhos. Vidas que não encontram outras vidas. Solidão.
Infeliz, infeliz Narciso! Preso novamente a sua própria imagem, sem acesso ao outro, sem acesso a vida – de trocas, de luz, de esperança, de construção. Quebre o espelho Narciso, bagunce a imagem na água, olhe verdadeiramente o que o cerca. Talvez… Talvez ainda haja tempo…
Tempo para finalmente ser e ser com os outros e reconstruir com o outro e só assim, conhecer o que é o amor.
Sobre a obra
A mitologia sempre esteve presente em minha vida, das mais variadas formas. Foi ela a responsável pelo interesse e aprofundamento de leituras, da escolha do curso universitário e da época escolhida para a especialização no mestrado em História. Por isso, é sempre um prazer voltar a me encantar com cada mito e suas ressignificações na nossa contemporaneidade.
O texto/conto apresentado é uma releitura de uma história escrita em 2005 (época deliciosa de início de faculdade e escrita de fanfics) e retomada com algumas pinceladas de novas reflexões. Uma pequena reflexão em meio a tantas e imensas que o grupo paideia tem proporcionado neste ano!
A criadora
Dani (Lithos)
Escritor / a
Aluna da Turma XXII
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